– O frouxo do delegado, agora, quer se livrar de seu preso – ironiza o assessor.
– Sim. Teme pelos seus. Quem tem responsabilidade teme pelos seus, só temerários não. Ninguém depende de suas ações por isso não entende. Também por isso é inconsequente. Talvez a idade ajude nisso. Com todo certeza. Quando tinha seus poucos anos costumava me sentir imune. Ulisses amarrado ao mastro enquanto ouve o maravilhoso canto. Porém, o rei de Ítaca já estava mais próximo de Caronte que do útero, por isso a aliança entre a curiosidade e a frieza do cálculo. Mas a juventude, mestra em zombar do que não compreende e em julgar com o rigor e a empáfia dos deuses o que não abarca, conta com a simpatia dos velhos para compensar sua alegre imprudência. Nada é tão comovedor quanto ver com olhos de plateia as reencenações das trapalhadas dos verdes anos. Por querer vê-lo envelhecer o suficiente para viver a sensação descrita lhe darei um conselho. Garoto modere suas demonstrações de desdém para aqueles homens do Arraial.
– Mas nada digo
– Contudo, demonstra. Se um deles se ofender, o que acha que irá ocorrer? Não irá entrar com uma ação judicial para buscar reparação, a reparação será na ponta de um punhal. Aquilo não é o mundo digital onde você diz o que quer e nada acontece. Lá, tudo tem consequência. O agir e o não agir. Ouça-me. Deixe-me ser as amarras de sua bela imprudência.
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Também na capital, não muito longe do diálogo anterior. Abigail finalmente consegue encontrar Dagmar em um shopping e não se contém. Corre até ela e investe contra ela.
– Como pôde fazer aquilo? Quem está te pagando?
– Não é nada disso….
– Então, onde você está trabalhando? Do que está vivendo?
Dagmar tenta fugir, entretanto, Abigail não sai do seu lado, a segue por toda parte do centro comercial e é taxativa: não irá embora enquanto não entender.
– Ela já tinha ficado tempo demais com o Doutor. Gostava dele. Não podíamos fazer nada por ela. Mas, pense, pense no que podemos fazer pelas demais. Essa é a causa, nada de paliativo, mas a solução.
– Que causa? Ela é a causa!
Mira-a. Não consegue deixar de fazer ligação entre as novas roupas de Dagmar e as sacolas de lojas frequentadas por gente de outra espécie com a divulgação da notícia e dos vídeos. Lança um soco e embala.
– Sua desgraçada! Você conseguiu transformar aquele monstro na melhor parte da vida de Pérsia! – a agressão só cessa quando percebe um tufo de cabelo da inimiga em sua mão.
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Em Arraial, corre a notícia que Gideão será solto a qualquer momento. Evaristo, um dos primeiros a saber, decide fazer um acerto antes que o noticiado aconteça, não quer entregar o mando com pendências. A caminhonete para no meio do sertão, em frente a uma modesta casa. Uma mulher vem à porta, percebe Evaristo e Aparício.
– O que deseja seu Evaristo?
– Onde tá vosso esposo?
– Saiu, foi na cidade – diz desconcertada.
Evaristo encara a mulher, em seguida encara o sol e sentencia.
– Ainda é cedo, deve de tá na lavoura – e, a pé, ruma para lá.
A mulher desespera-se, porém sabe que não pode se bater com a fera, por isso roga.
– Onde vai Evaristo. Deixa ele em paz!
Evaristo faz que não ouve, passa a casa e continua. A mulher percebe que não é e não será atendida. Então corre para o fundo do casebre e grita para o horizonte.
– Foge, Claudir! Claudir foge!
Aparício encosta sua arma na testa da mulher.
– Vai ficar quieta do jeito difícil ou do jeito fácil?
A arrasta para dentro da casa. Tranca a criança que consegue andar no quarto onde está a de colo, o dos adultos da casa, e joga a mulher sobre a infantil cama.
– Misericórdia, Aparício! Meu esposo, sou casada!
– Não, é viúva, desacompanhada.
Claudir tem a impressão de ter ouvido a voz da mulher. Deixa a enxada, dá alguns passos em direção a casa, mas para ao ver Evaristo.
– O que traz o senhor aqui?
– Não se faça de besta, sabe muito bem.
– Aquilo no bar do seu Pitomba foi coisa da cachaça, eu não penso nada daquilo. Juro por Nosso Senhor Jesus Cristo.
– A questão não é o seu pensar, é o seu dizer.
Ao ver Evaristo empunhar a arma pensa em correr. Mas de nada adiantaria, compreende. Evaristo é atirador com olho de águia, não perde tiro.
– Pelo amor de Deus, Evaristo! Eu não disse mentira, disse? Eu não devia ter dito o que disse do mais novo de seu Dião. Mas ele é xibungo, todos sabem. Não tem mentira nenhuma. Não levantei falso.
– Se a verdade ofende não deve ser dita. Se diz tem que arcar com as consequências. Como é que vou olhar na cara de Dião sabendo que ouvi o que ouvi e não fiz nada. Nessa vida, o vivente tem que cuidar do que fala e de quem fala, senão, os dias encurtam.
Enquanto reza para Aparício terminar logo sem lhe fazer mal algum ouve sons secos, estranhos à Natureza, porém próprios de uma natureza, vararem o ar duas vezes. Profecia cumprida, percebe, e lágrimas começam a rolar.
Aparício farta-se. Fica em pé e ordena que ela arrume o vestido e vá vê-lo na sala. Ele entra na sala, logo, ela lá chega. Então, Aparício tira da algibeira um pardo pacote gordo e o coloca em uma estante, entre as imagens de Nossa Senhora e Jesus Cristo.
– É para remediar os dias difíceis.
Deixa a casa sem olhar para trás e assume o assento do motorista. Mais um pouco chega Evaristo.
– Fazer viúva com cria pequena é danação. Mas o sujeito bebe, esquece dos seus e nós é que vamos lembrar? Temos nossas lealdades para respaldar.
Caminhante