No majestoso gabinete dos representantes do povo…
– Eles se levantaram contra o povo. São contrarrevolucionários, opressores do proletariado, da nação e da família. Nós, como representantes últimos do povo, não devemos fraquejar, camaradas. Não podemos tolerar isso, irmãos. Por isso eliminamos e eliminaremos todos os que a nós se opõem. Como já foi feito com corruptas instituições. Afinal, quando muitos mandam não há ordem, impera a anarquia. E opiniões demais impedem o agir!
É aplaudido efusivamente, a lisonja dura cinco minutos e o líder máximo, o Protetor dos fracos e oprimidos, como um galo, passeia, com o peito estufado de orgulho, admirando seu galinheiro; o conselho. Uma das passivas e dóceis galinhas levanta a mão. O líder volta ao seu lugar, na gigantesca mesa de peroba rosa com detalhes em ouro.
“Mais um breve discurso de congratulação de meia hora”, pensa, já antegozando a iminente massagem tântrica de seu ego.
– Grande líder, Ó Humilde dos humildes, Ó Humanistas dos humanistas, Ó Solidário dos solidários, Ó Justo dos justos. Perdoe a minha ignorância, mais esses milhões de opressores que estão perecendo de fome, por acaso, não seriam o povo?
O ambiente aconchegante em um instante fica glacial, todos sentem enorme desconforto, mas ninguém se atreve a se mexer para não prejudicar a saúde. O líder também fica imóvel, afinal é O Oráculo das bem aventuranças, da redenção, do amanhã glorioso, não está acostumado a ser questionado, isso é até ridículo, como porta voz do Bem, embaixador dos Grandes Ideais não Lhe cabe ser questionado, seus sacerdotes devem apenas ouvir suas incorrigíveis prescrições, além de executá-las, obviamente. Como agora pouco, seu discurso deve ser assimilado pelos os demais e estes devem infundi-los no povo (não na parte massacrada pelo jejum forçado, seria fora de lógica, pois mortos não precisam ser persuadidos. Desde que Sua Graça não decida o contrário).
O Oráculo começou a sentir uma perturbação, tinha de dizer algo. Todavia como poderia? Desde que se tornara O Ungido, O Escolhido por si mesmo por meio de uma auto-revelação não dialogava com os demais. Na verdade nunca foi muito bom nesse tipo de interação, argumentar e contra-argumentar não estava entre suas aptidões. Veja só, inclusive chegou a desconfiar de sua inteligência, a considerá-la precária. Temos que levar em conta que o meio não favoreceu muito, seus coleguinhas de escola o chamavam de asno, lerdo, tanso. Durante muito tempo foi assim, tudo mudou quando partiu para cima de um deles e passou a ameaçar os demais, deu-se conta de sua força sobre-humana e passou a ser o líder de todos, pois era o mais forte. Essa foi sua primeira auto-revelação, quando estava na quarta série aos dezesseis anos.
– Você acha que eu estou cometendo um erro? Você não está concordando comigo? Quem permitiu isso?
– Heresia, heresia – cacarejam, assombradas, as demais galinhas.
– De maneira alguma, extraordinário Líder. De que maneira eu poderia discordar da Inteligência das inteligências? Aristóteles, Schopenhauer e Einstein juntos são um infinitesimal parte de uma gotinha se comparados à Vossa oceânica sapiência. Admito ter ficado em dúvida e ter me atrapalhado. Portanto, não compreendi, entretanto, tenho fé em Vossa clareza – e faz uma profunda reverência enquanto sua frio.
– Ah, bom. Bom para você. Epa! Espera aí! Esse tal de Einstein não é aquele da relatividade?
– Sim, foi Einstein que elaborou a Teoria da Relatividade – diz quase tranquilo.
– Nada é relativo! Tudo sou eu! Para a masmorra! Para a masmorra!
O recinto é invadido por membros da guarda muito bem vestidos em seus ternos feitos sob medida. O traidor implora por perdão, mas recebe um golpe no abdômen e um mata-leão, assim, a língua enganadora no Mal é calada.
– Quero ele em pedaços antes da janta, meus cães têm fome! – ordena o Comandante.
Com a víbora arrastada para fora, com mais um artifício do demônio derrotado, o Grande Líder indaga aos que restam na sala.
– Alguém mais tem algo a dizer?
– Eu – e dá uma passo a frente, gerando apreensão. – Perdoe-me Grande Líder por não ser capaz de expressar o quanto o amo e lhe sou grato – e ajoelha-se em adoração.
Os demais seguem o da vanguarda e um sorriso surge nos lábios do Condutor.
– O que acharam dos novos ternos da minha guarda?
Todos elogiam os ternos, tecem comentários abonadores e enaltecem o bom gosto do Grande Líder.
– Sim, estava enjoado de preto, lembra demais a morte. Esse cinza escuro fica muito melhor.
Caminhante