Aparecida sente-se diferente, não precisou propor às dores um armistício temporário. Elas simplesmente não se fizeram presente no campo de batalha, seu corpo. No caminho para o trabalho estranhou a confusão que tomava a cidade. Presenciou a queda de uma garbosa estátua. Ficou curiosa, procurando saber de quem é para saber o motivo dela ir à terra.
– Sim, sim. Me alembro. É o ceifador. O sangrador. O deus bebedor de sangue. Ficou célebre por nos tirar a vida. Virou fidalgo por nos reduzir à servidão. Fez seu trono com nossos ossos e sua coroa com nossas almas. É a estátua de Apolo, o velho.
Então, das brenhas da memória surge o evento que pariu essa enorme onda de protestos e manifestações, a peregrinação à Cordilheira. Vinha à frente de todos, liderava e guiava a procissão. No meio do caminho ao cume um vendaval pegou todos de surpresa. Não conseguiam progredir. Por mais força que fizessem não avançavam um passo, assemelhavam-se a acorrentados no limite da extensão dos elos. Antes que o desespero os tomasse compreenderam: a Cordilheira só queria falar a Aparecida e a mais ninguém.
– Vá Aparecida. É a vontade da Deusa. Espero aqui com as crianças – Maria.
E assim foi. Alcançou o cume não com dificuldade e esforço, mas com a facilidade de quem é ascendida. Foi abraçada, não viu, porém sentiu. Não ouviu, contudo entendeu. E soube o momento de retornar. Não desceu com tábuas, mas trouxe uma fala.
Não adianta olhar pro céu, com muita fé e pouca luta
Levanta aí que você tem muito protesto pra fazer e muita greve, você pode, você deve, pode crer
Não adianta olhar pro chão, virar a cara pra não ver
Te botaram numa cruz e só porque Jesus sofreu não quer dizer que você tenha que sofrer
Muda, muda essa postura
Até quando você vai ficando mudo?
Muda que o medo é um modo de fazer censura.
Muda, que quando a gente muda o mundo muda com a gente.
A gente muda o mundo na mudança da mente.
E quando a mente muda a gente anda pra frente.
E quando a gente manda ninguém manda na gente.
Na mudança de atitude não há mal que não se mude nem doença sem cura.
Na mudança de postura a gente fica mais seguro, na mudança do presente a gente molda o futuro![1]
Aparecida fica espantada com sua recordação. Vacila, cogita a hipótese de tudo ter sido alucinação. Enquanto duvida de si e do que fez, seus olhas caem sobre uma das tantas faixas dos manifestantes: nos tiraram tudo, até o medo. E sorri e sente as esperançosas lágrimas chegarem aos lábios. Rios percorrendo o Atacama.
Caminhante
[1] Trechos da letra de música Até quando de Gabriel, o pensador, Tiago Mocotó, Itaal Shur.